Luís Tavares conta também que, em uma
campanha política no ano de 1946 ou 1947, o candidato a prefeito de
Princesa, Nominando Muniz Diniz, trouxe à Manaíra uma professora e subiu
com ela ao palanque, montado em cima de um caminhão. No início do
discurso perguntou ao público presente se já tinha ouvido a história de
Manaíra. Perguntou também se conhecia o significado do nome. Apresentou
a professora e, a parir daí, ela começou a narrar a saga da índia,
baseada nos escritos de Coriolano de Medeiros. Talvez não tenha sido por
isso, mas é certo que agradou aos ouvintes e ganhou a eleição.
O décimo capítulo do livro “MANAÍRA – Nas
Trilhas da Conquista do Sertão”, publicado em 1936, narra esse episódio,
enriquecido de detalhes e romanceado pelo escritor paraibano Coriolano
de Medeiros, transcrito a seguir, como no original:
X
O THALAMO DE
MANAÍRA
...esta tribu foi uma das que entraram
na confederação dos carirys que resistiram
muitos annos. Nessa luta os sucurús deserta-
ram para os bandeirantes; entregaram-se ao
capitão-mór Luiz Soares e este, não pó-
dendo dispensarlhes muita confiança, reti-
rou-os do sertão e veio aldeial-os nas cabe-
ceiras do Araçagy.
ESCLARECIMENTOS:
CANGASSÚ – Chefe guerreiro,
pai de Manaíra – Sua tribo ficava às margens do Rio Sucurú, nas
proximidades de Taperoá.
CAPUCHÚ – Irmão de Manaíra
que levou os bandeirantes até a aldeia.
MANOEL GARRO – Homem branco,
chefe dos bandeirantes, buscava encontrar o ouro das Bruscas (Cachoeira
de Minas)
BOIASSÚ – Chefe de outra
tribo, para a qual fugiu Manaíra (possivelmente essa tribo é a que
representaria aquela localizada no sítio Oiti, entre a Balança e a
Salgada – município manairense).
FILHO DE BOIASSÚ (nome não
identificado) Era o filho de Boiassú. Ele e Manaíra se amavam e por isso
fugiram para que ela não se casasse com Piancó.
PIANCÓ era o chefe dos
índios Coremas, a tribo mais numerosa e poderosa de todo o interior da
Paraíba.
MANAÍRA era uma jovem de
aproximadamente 16 anos, pertencia à tribo Sucurú, da família dos
Cariris (Tapuias - índios do sertão, distantes do litoral).
PUNARÉ – Velho índio, amigo
de Manoel Garro e capitão dos bandeirantes.
PAGÉ – Feiticeiro dos
Sucurús.
Cangassú recebeu o filho, gritando e
gesticulando furiosamente. Parecia que o vírus da loucura tinha
contaminado os caboclos daquela aldeia. Capuchú silencioso escutava
humilde o que o pai dizia. O guerreiro por fim, talvez cansado, calou-se
e o jovem sucurú começou a falar. Contou como fora detido e entregue ao
pagé-branco; quem o libertara e quem o livrara de ter sido morto, pelos
bultrins.
Apresentou Manoel que pretendia
passar-se aos Coremas, ao qual promettera a amizade e o auxilio
paternos. Concluiu e ficou firme fitando o velho selvagem.
Cangassú dirigiu-se a passos
largos para o bandeirante, passou-lhe o cachimbo e convidou-o a
sentar-se na rede distendida num ângulo da oca. Serviu-lhe abundante
refeição e depois entrou a discutir o assumpto.
- Branco, disse Cangassú, para
chegares aos Coremas, tens de passar pelas gentes de Boiassú, entre as
cabeceiras do Pinharas e do Pageú. Eu e elle nascemos irmãos, fomos
alliados e agora somos inimigos. Alem de insultar-me, insultou os meus
guerreiros que reclamam a desaffronta, e amanhã os levarei à vingança.
Boiassú é forte, conta maior numero de guerreiros por isto zomba de
todos. Mas prefiro, e os meus arcos commigo, morrer à porta da caiçara
inimiga, a ficar-me quieto com a affronta em casa. Branco, eu não te
chamei, vieste por teu gosto trazer-me tua amizade; somos amigos,
recusarás acompanhar-me à guerra com teus homens?
Manoel reflectiu a resposta:
-Meu dever é acompanhar-te e
acompanhar-te-ei. Combinemos entretanto: isto é uma luta entre irmãos,
como acabaste de referir. Saibas ou não, minhas armas são fulminantes,
assim só applica-las-ei contra o inimigo se perigar tua Victoria.
Acceitas?
Cangassú aceitou. Saiu da oca e
arengou para os seus guerreiros que responderam com um alarido de
rebentar ouvidos. Manoel comprehendera que o chefe gritara mais ou menos
o seguinte: - Guerreiros, o branco veio até nós, o branco vai
acompanhar-nos à aldeia inimiga e leva com elle as armas que estrondam
como o trovão e matam como o raio. O branco veio como amigo de Capuchú
que é filho e guerreiro de Cangassú e Cangassú é o chefe dos sucurús
daqui até a bocca do Timbaúba e daqui até a serra grande, onde Taperoá
começa.
Os índios exultaram e
applaudiram lá a seu modo. Depois veio a noite. Entregaram-se ao sonno.
Ao despertar já Manoel encontrou Cangassú de pé. Sua physionomia deixava
levemente transparecer a alegria comprimida no intimo. Sentou-se noutra
rede ao lado do hospede e começou a falar. Capuchú veio postar-se junto
e ficou de pé, imóvel sem articular um som.
-Branco, tu que agora és meu
amigo e alliado, escuta as razões da nossa guerra. Na lua passada aqui
chegou um filho de Boiassú convidando-me para deixar os Carirys, e
alliarmo-nos aos guerreiros do Assú. Para isto, na occasião do levante,
nós ficaríamos quietos em nossas redes, emquanto os outros se afolozavam
na guerra. Nós teríamos paz, armas e ferramentas. Respondi que precisava
ouvir outros chefes e os mandei chamar, ao mesmo tempo que enviava ao
Assú um velho guerreiro conhecedor dos brancos, afim de inteirar-se
manhosamente, da verdade. Por isto fui entretendo o rapaz por aqui e por
fim notei-lhe pouco desejo de ir embora. Um dia fomos pescar e lá, a
beira dum poço, pediu minha filha Manaíra para sua mulher. Recusei; não
porque fosse elle mau guerreiro, mas por have-la prometida a Piancó,
poderoso chefe Corema. Disse-lhe, sem reserva, o empenho de minha
palavra. O moço não me tornou coisa alguma, mas certa noite levou-me a
filha para sua aldeia. Mandei recados a Boiassú para que me devolvesse a
moça. Não me deu resposta. Repeti uma outra vez, não me escutou. Agora
vou até lá com meus arcos e o teu auxilio e abro-lhe os ouvidos e trarei
Manaíra ou nunca mais ouvirei, nem verei coisa alguma. Agora Branco,
quero o conselho para o ataque. Nós fazemos a guerra, vencemos às vezes,
mas com tanto sangue, com tantas vidas, que quase não sobra guerreiro
para cantar a Victoria. Os brancos não são assim: pouca gente, pouco
esforço, grande manha...
Manoel quase nem mais ouvia o
selvagem desde que este lhe nomeara Piancó chefe duma tribu de indios
Coremas. Quando o outro terminou começou o moço a falar. Era preciso
dizer alguma coisa, confirmar o conceito em que o chefe Cangassú tinha
os brancos. E deixou-se ao léu do pensamento.
-Preciso que o valente chefe
Cangassú me preste informações exactas sobre a taba de Boiassú, a
distancia, a posição, o numero de guerreiros de que dispõe, como se
abastece dagua e de alimentos.
O chefe sucurú depois de alguns
instantes a puxar fumaças, respondeu:
-A taba fica antes do outro
pico, o mais alto de toda esta serra. Saindo-se daqui á tarde com o sol
alto, ainda se chega lá com o tempo de um somno para descanso,
fazendo-se uma pausa a meio caminho. E’ verdade que a marcha deve ser
marcha de guerreiro para surprehender o inimigo. A caiçara é formada
quase toda naturalmente, por blocos de pedra que difficultam o ataque.
Fora da caiçara, não muito longe, está o olho dagua com que matam a
sede. Alimentam-se de caça, mel e taioba. Mas um chefe, ainda mesmo
amigo, nunca pode saber de quantos guerreiros dispõe o outro chefe. Não
me envergonha confessar que tenho muito menos guerreiros do que elle.
-E’ bastante, interrompeu o
moço, prepara os teus homens e eu prepararei os meus. Hoje não
descançaremos; ao sumir-se o sol, estaremos de marcha, e, antes que a
taba de Boiassú comece o somno que precede os primeiros traços do dia,
tu e os teus estarão às portas da aldeia inimiga. A sua gente acordará a
golpes de tacapes e a ponta de flexas. Se o ataque for rápido e sem
vacillação dentro de uma hora, isto é, quando o sol apparecer, será
saudando a Victoria do chefe Cangassú.
-Mas, branco, os guerreiros
sucurús não andam de noite, receiando os maus espíritos.
-Leva o teu Pagé, elle afastará
os espíritos. Tu sabes, chefe: Tupá é mais forte do que todos os
espíritos e Tupá te protegerá porque a tua causa é justa, é a causa de
teu povo.
Cangassú calou-se; pensou um
instante e saiu da oca. Então Capuchú moveu-se. Com um tênue sorriso
aproximou-se do amigo branco, para proferir baixinho:
-As tuas palavras deram mais
força, a meu pai e se sairmos cantando Victoria desta luta, nunca mais
te deixarei os passos. Vou preparar minhas armas. Não demoro.
Saiu. No mesmo instante quase,
Punaré entrou e Manoel perguntou que havia.
-Nós vamos á guerra?
-Vamos à guerra. Verifique
armas e munições. Formaremos uma especie de reserva. Sómente em casos
extremos, entraremos na luta.
-Quando partimos?
-Hoje mesmo, antes do pôr do
sol. Andaremos toda noite a ainda com a noite, estaremos nós ao pé da
caiçara; e elles dentro das ocas inimigas.
-Mas hoje à noite ninguém
poderá caminhar...
-Por que?
-Vai chover muito, esta noite.
-Tens certeza disto?
-Toda. Vi há pouco, uma
geriticaca tirar o filho de uma grande moita de mofumbo que está no meio
do riacho, e foi esconde-lo no alto. Voltou, levou outro filho e não
desceu mais. Quando ella faz isto, o riacho tem de encher.
Manoel levantou-se da rede com
a physionomia alegre para insistir sobre o caso e o caboclo reaffirmou:
-Nunca se viu o contrario, e se
duvidas pergunta a algum dos velhos sucurús desta aldeia.
-Não, não perguntarei. E’
possivel que somente tu tivesses visto, dada a preoccupação dos
selvagens com a guerra. Pois bem: vou tirar de tua declaração grande
recurso para encorajar Cangassú e sua gente. Mas não digas nada, nem
contes que viste a geriticaca tirar os filhos do baixio, nem lembres a
ninguém a possibilidade de chover à noite. Agora vai cuidar das nossas
armas e das munições de bocca.
Saiu o índio, Manoel deixou a
rede e chegou à porta, à única entrada da oca que, com muitas outras, se
erguia dentro de resistente paliçada. Por mais que desejasse, não viu
uma criança, nem uma mulher. E procurava explicar o caso, comsigo mesmo,
sendo a reflexão interrompida com a chegada de Cangassú, que não
disfarçava o contentamento.
-A’ hora que indicaste,
partiremos.
A’s três horas da tarde, todo
vasto campo em torno da aldeia fervilhava de guerreiros, primando cada
um pela singularidade da indumentaria, visando todas emprestar ao
selvagem, aspecto feroz, hórrida catadura. Vociferavam, gritavam,
cantavam, saltavam, careteavam, não tinham um minuto de quietação.
Manoel, Cangassú e Capuchú chegaram á frente dos selvagens que os
saudaram com a mais formidavel vozeria. O bandeirante pediu ao chefe
sucurú:
-Preciso ver o teu Pagé.
-Cangassú levou-o á retaguarda
do campo, aonde um velho índio se retorcia em tregeitos simiescos. Os
seus esgares, só terminaram quando lhe disse o chefe sucurú:
-Pagé, o chefe branco nosso
amigo, veio ver-te e falar-te.
-Que o branco me fale, e que
não me veja... disse o pagé e enroscou-se acocorado junto ao tronco
annoso de um cedro.
-Pagé, disse o Garro
aproximando-se e procurando distinguir os traços daquelle rosto
semiocculto entre os joelhos mirrados, resequidos de múmia; Pagé, vim
ouvir-te e ver-te. Gosto de olhar a fonte aonde bebo água.
Trocaram gentilezas e depois o
moço atacou o assumpto principal:
-Pagé dos sucurús, eu sinto teu
coração dizer que se Tupá nos falar hoje pela chuva e pelo trovão, a
Victoria é nossa.
-O pagé confirmou e o moço
disse que Cangassú communicasse a seus guerreiros o vaticínio do pagé. A
voz do chefe, num urro de espantar, pediu silencio e transmittiu:
-Guerreiros: o pagé falou
assim: havendo hoje trovões e chuvas, Tupá está comnosco, a Victoria
será nossa.
Estrugiram novas saudações e
poucos instantes depois mil guerreiros, talvez mais, avançavam
destemidos contra a aldeia do Cobra-grande. E, cousa singular, daquelles
homens caminhando apressados não se percebia o tropel. Ao cair da noite,
Punaré aproximou-se de Manoel e segredou-lhe:
-Escuta!...
O jovem prestou attenção: um
reboar de trovões distantes chegou-lhe aos ouvidos. Uma hora depois um
relâmpago rasgou a escuridão nocturna sobre as cabeças dos guerreiros de
Cangassú, seguindo-se um trovão forte que retumbou no meio do céu para
num esmorzando prolongado extinguir-se lá para as bandas da aldeia
inimiga. Os guerreiros pararam e no vácuo da noite vibraram os selvagens
este grito de triumpho – Tupá! Tupá! Tupá!
Pela meia noite, a tempestade
desabou. A marcha, porém affrouxara um pouco: o terreno tornara-se
escorregadio; um simples córrego se transformava em caudal impetuosa.
Manoel não via nada, era levado pelo instincto e pela argúcia de Capuchú.
Por fim o temporal amainou e iam galgando uma subida, quando da frete
eccou um urro impressionante.
-O urro de meu pai atacando a
caiçara inima, explicou o moço sucurú.
E seguiu-se um estridor
ininterrupto. A aldeia despertou a golpes de tacapes e a farpas de
flechas. Emquanto durou a treva, a vantagem da luta estava com os
guerreiros de Cangassú. Com o dia, a sorte inclinou-se para os atacados.
Boiassú era, de facto, um grande chefe. A cada instante recebia
auxílios.
Os atacantes agora com
inacreditável esforço, mantinham a defensiva, apoiando-se na serie de
rochedos que circulavam a aldeia. Com a manhã tinha Manoel e os seus
homens occupado o alto de um penedo donde observaram todas as phases da
luta. Ao passar o sol, era indubitável a derrota de Cangassú. Os
contrários, numa bem pensada manobra, tinham o resto do exercito
atacante no seio de um crescente cujas pontas iam se juntado. Então
Capuchú, que estivera lutando ao lado do pai,offegante, gottejando suor
e sangue, chegou-se a Manoel proferindo com amargura estas palavras:
-Chefe, chegou o momento de
cumprires tua promessa...
Manoel mandou escorvar os
trabucos, e avançou contra o inimigo visando o ponto onde a cohesão era
mais patente. Deu a primeira descarga. Os índios estacaram de súbito.
Nunca nos recôncavos daquellas serras tinham ecoado as explosões das
armas européas. Fitavam surpresos meia dúzia de guerreiros nas
convulsões da morte, se esvaindo em sangue. Cobra-grande ia reanimal-os.
estrondou nova descarga; Boiassú e dois ou três dos seus chefes tombaram
resupinos na agonia final. Houve então uma scena indizível, uma espécie
de arranco de boiada; toda aquella massa aguerrida abalou. Todos se
precipitaram em fuga vergonhosa. Despencaram-se pelos alcantis, pelos
declives da serra; desciam em carreira vertiginosa na esperança de
encontrarem-se o mais cedo possivel com Luis Soares que lhes havia
offerecido um tratado de alliança. E Cangassú com a sua gente carregou,
frechou, espedaçou os fugitivos até a aba da serra. E repetia feroz – O
pagé pela bocca do branco, avisou que Tupá estava comnosco! Mais ou
menos três horas da tarde e os irmãos de Capuchú eram donos absolutos de
toda aldeia.
Manoel procurou reunir os seus
homens e, ao pé do rochedo donde sahira para destroçar os contrários,
aguardou a presença de Cangassú que, com os remanescentes de seu
exercito aprisionavam homens, mulheres e creanças, saqueavam e destruiam
as ocas do inimigo. Concluida a faina sinistra, o chefe indígena numa
satisfacção de fera saciada, aproximou-se do bandeirante, e num gesto de
sincero reconhecimento depositou-lhe o arco e o tacape. Manoel
recolheu-os, entregou-os ao vencedor e falou assim:
-Chefe surucú, a tua fama, o
canto de tua Victoria vão ser escutados do sertão ao mar. E’s o mais
valente guerreiro do alto da Borborema. A tua gloria é completa, o
numero de mortos assombra o bando de caramirangas que negrajam os
espaços. Chefe, não mates mais ninguém. Leva essas mulheres, essas
creanças, mesmo os guerreiros que estão nos arrochos da mussurana;
reúne-os ao teu povo: guia-os lá para as proximidades do Matinoré onde
será fundada grande aldeia a que o branco dará o nome de um guerreiro
que se cobria, como tu, com a pelle, e se alimentava de mel e
gafanhotos.
-Mas talvez ignores que os
fugitivos foram buscar os guerreiros escuros do Assú para nos darem
guerra
-Os guerreiros do Assú são
amigos dos brancos e em nome destes eu te offereço sua amizade, sua
aliança.
-Chefe branco, és o enviado de
Tupá. Acceito a proposta e farei o que me pedes. A minha vingança,
porém, que é a vingança de minha tribu, exige o sacrifício de duas
pessoas. Sem isto Cangassú não poderia perdoar as outras.
-Seja... Mas duas sómente,
rematou Manoel.
O selvagem olhou demoradamente
o alto do penado cuja face superior era lisa e plana. Chamou por vários
indios e, num instante, lá estava empilhada grande quantidade de galhos
seccos. Garro não comprehendeu e perguntou a Capuchú:
-Uma fogueira?! O selvicola
respondeu affirmativamente de cabeça baixa.
Cangassú deu novas ordens e,
breve chegaram outros guerreiros trazendo um fardo humano. Era um casal,
dois jovens apenas sahidos da adolescência, ligados fortemente um a
outro face contra face.
Apesar de vivos não soltavam uma queixa,
não escapavam um gemido. Foram collocados sobre a lenha. Immediatamente
o fogo crepitou por todos os lados. Manoel, impressionado inquiriu
Capuchú, que respondeu de vistas baixas:
-Manaíra...
-Manaíra?! Tua irmã?! A filha de
Cangassú?!
-E o noivo... respondeu o moço sucuru
afastando-se do local.
Manoel não quiz presenciar mais
o estertorar do infeliz casal. Deu uns passos, e eis que ouviu atrás de
si ua gargalhada satânica. Voltou-se. Era Cangassú. O velho cacique
gargalhava, mas duas lagrimas brilhavam-lhe nas faces de fera.
E a violência das chammas estanpou no
rochedo vestígios indeleveis, os signaes que, futuramente, significariam
ao viajante:
-Foi aqui o thalamo de Manaíra!
No mesmo romance, no capítulo XV, o tema
Manaíra retorna com o contado do bandeirante com o cacique Piancó. A
transcrição aqui também segue a grafia do original.
XV
INGENUIDADE
CABOCLA
...mandou contra os selvagens o coronel
Manuel de Araujo, pernambucano de valor
que residia á margem de S. Francisco etc.
No Pageú teve de sustentar sérios en-
contros e só depois de uma anno conseguiu
ali submetter o gentio e então transpoz a
Borborema, entrou nas Pinharas, onde en-
controu, em uma luta com os selvagens Theo-
dosio de Oliveira.
Tres annos empenhou-se Manoel de Araujo
Na conquista do Piancó e comprehendeu que
só por rasgo de audácia, só por meio de
uma acção cavalheiresca e corajosa, podia
terminar a luta.
. . . . . . . . . . . .
<<Por penhor de sua palavra entregou Ma-
noel de Araujo ao Maioral dos Coremas o
seu bastão e do índio recebeu uma grinalda
de vistosas lumas.>>
O Autor - << Entradas >> - Rev.
do Inst. Hist. e Geogr. Parahybano
- Vol. 2º, pag. 23.
O ENCONTRO COM PIANCÓ
O povoamento do sertão
continuava, occupando a vanguarda dos colonos os numerosos parentes de
Theodosio, guiados por este. Os selvagens recuavam para os recôncavos da
serrania, numa resistência tenaz, desesperada e inútil. Caçados, na
expressão própria do termo, em maioria, como feras acossadas, preferiam
a brutalidade do extermínio á clemência humilhante da submissão.
Sómente os Coremas
resistiam vantajosamente, graças ao numero e á extensão de seus dominios.
Ouve uns instantes de
tréguas. Com as primeiras águas voltaram-se todos para as suas roças,
para as suas criações.
Manoel tentou
dedicar-se aos misteres agropastoris. Concertou curraes e cercados,
reparou açudes, plantou cereaes e algodão, mas emquanto os braços
trabalhavam, a fascinação da mina lhe empolgava o espírito.
empregou todos os
meios, todos os esforçoes para escapar-se á tentação. Diligenciava
inutilmente e, aos primeiros dias de junho seguia a reunir-se a
Theodosio. A’ frente dos seus arcos, rumou para as margens do Taperoá,
por onde subiu até a aldeia do Cangassú que, com os seus, barrava a
passagem dos Coremas para os Carirys.
Garro demorou-se ali
o temponecessario para reforçar os seus guerreiros e assistir uma festa
em sua honra. Depois costeou o Pico e desceu para o Valle do Pinharas.
Dentro de pouco tempo
encontrou-se com um destacamento da columna de Oliveira Ledo, o qual ia
postar-se na Passagem, afim de impedir que os Coremas viessem ao longo
da serra assaltar as fazendas situadas, entre os valles do Pinharas e do
Sabug, Ahi, soube Manoel Garro estar Theodosio em Itatinga ou Pedra
Branca, concentrando elementos para obrigar os índios a evacuarem o
sertão, a refugiarem-se nas serras, aonde mais tarde seriam caçados.
Limpar o sertão, eis
o primeiro problema. E a solução permanecia confusa, intricada,
porquanto o gentio numeroso, ao sentir a pressão num ponto, levava a
offensiva ao que sabia estar fraco ou desguarnecido. Tambebm não
desconheciam o systema de guerrilhas, atacando de surpresa e recuando
immediatamente com o que lhes caísse nas mãos.
O capitão-mór das
Piranhas recebeu Manoel e ordenou que continuasse a viagem para a
povoação, subisse até as cabeceiras do rio do Peixe, do Piranhas,
avançasse pelo Piancó, o mais que pudesse, para que o selvagem não
tivesse momento de folga, e nem dispuzesse do recurso, de transferir
guerreiros dum para outro ponto.
Com estas
instrucções, entrou Manoel em Piranhas ao declinar do dia, encontrando a
população apossada de grande sobresalto.
Bandos de índios
vindos do norte, das cabeceiras do Piranhas, tinham-se aproximado do
burgo commettendo sérias violências. Manoel presumiu que o medo tivesse
occasionado exaggeros mas não descurou de mandar exercer vigilância nas
proximidades do povoado, e guarnecer convenientemente os fortins. Alem
disto, conservou todos os homens válidos promptos para entrarem em acção.
Em vista das
informações, receiou pela segurança de Capuchú que vinha com o atraso de
meio dia, acompanhando com a pequena escolta de doze homens, oito muares
carregados com armas e munições. O resto do dia passou sem a menor
alteração. Caiu a noite, escura, carregada, ameaçadora. Depois choveu
durante três horas, fortemente, sendo os aguaceiros acompanhados de
ensurdecedoras descargas electricas. Alta madrugada, tudo serenou,
ouvindo-se apenas o escachoar das águas nos rios e riachos, o coachar
dos caçotes como se estivessem sendo espremidos, destacando-se daquella
Barbara harmonia de batrachios o solo atamborilado, majestoso, vibrante
dos carurus.
Todos se aquietaram
num somno profundo para despertarem aos urros pavorosos de uma
investida. os selvagens reunincdo poderosos e avultados elementos,
assediavam Piranhas. A quantidade era tal, que, se tivessem no primeiro
instante tentando um assalto teriam levado tudo de roldão. Mas os
sitiantes, embra conscientes de sua fora, sentia prazer em prolongar a
agonia do inimigo. Assim resolveram matal-o pouco a pouco,
saboreando-lhe o soffrimento.
Manoel pesou todas as
probabilidades e sustentou heroicamente o embate emquanto foi dia. A’
noite, ficou a povoação num circulo de fogueiras. Depois da meia noite,
tentou o moço insinuar para fora do campo um pequeno destacamento que
pudesse voar em busca de soccoro. teve de regressar accusando baixas.
alguns índios que tentaram atravessar sorrateiramente a linha inimiga,
não o conseguira, pelo que aos albores do dia, o esposo de Eulina,
julgava Piranhas irremediavelmente perdida, sem esperanças de que
escapasse um só dos seus habitantes. Foi neste momento que todas as
mulheres do logar se reuniram em torno do chefe e o convenceram de que
deviam fazer um boto fervoroso a Nossa Senhora do Bom Sucesso, para
obterem a Victoria. Garro respondeu-lhes que, sómente um millagre,
poderia evitar a completa destruição da localidade.
Contrictos e de
joelhos, formularam a promessa.
Manoel deixou as
mulheres rezando, e foi estimular a defesa, pois os sitiantes
demonstravam que se apercebiam para o assalto definitivo.
Os defensores de Piranhas
entretanto não dissimulavam o desanimo, o cansaço, e era opinião
corrente que aquella noite encontraria a mor parte delles dormindo o
somno eterno e o resto ligado pelas mussuranas, marchando para os
festins de triumpho dos vencedores.
Dia alto, iniciaram
os selvagens o movimento estrangulador.
O ataque
generalizou-se por todos os lados e com a mesma vehemencia. No mesmo
instante, porém, por todos os pontos da retaguarda do inimigo rompeu uma
descarga de trabucos e mosquetes.
Tão confiantes
estavam os sitiantes do seu poder que se descuidaram e não perceberam
por sua vez, o sitio que lhes fizeram as forças de Theodosio. O pânico
foi indescriptivel. E logo que Manoel comprehendeu a situação sobre o
inimigo, que, entre dois fogos teve incontável numero de baixas e
rendeu-se a discreção, para repetir-se a façanha monstruosa que vimos
uma vez nos campos dos Carirys!...
Manoel intercedeu
pela vida dos prisioneiros. Tirassem-lhes a liberdade mas lhes deixassem
a vida. Theodosio respondeu:
-Não convem: o
escravo indígena está no litoral, valendo de três a quatro cruzados.
Soltal-os é dar forças a inimigos; conserval-os encarcerados, seria
arruinar-nos para sustental-os.
Alem disto... Não são
christãos...
E apunhalou-os.
Agora vejamos a
maneira como o capitão-mór soube do sitio de Piranhas.
Capuchú chefe da
tropa conductora de munições, precavido e astucioso, mantinha um homem
fazendo reconhecimentos, pouco mais ou menos meia légua adiante, como
outro á retaguarda para evitar uma surpresa pelas costas. Por isto, foi
advertido em tempo do cerco que índios vindos do norte e oeste da
capitania tinham posto a Piranhas. Elle mesmo foi cautelosamente
inteirar-se. Mandou voltar o comboio e correu até Pedra Branca a relatar
o caso a Theodosio. Este, por sua vez, avançou, ás carreiras chegando a
tempo de remediar o que parecia inevitável.
Passada a refrega
todos os habitantes de Piranhas reuniram-se no local destinado á
construcção de uma igreja e solennemente, declararam que a povoação dali
por diante se chamaria Bom-Sucesso.
Theodosio voltou a
Pinharas. Manoel, depois de varias providencias relativas á segurança de
Bom Sucesso, organizou poderosa columna e marchou contra os índios
inimigos.
Subiu pelo Piranhas,
entrou num tributário deste a que os naturaes chamavam Pirahy, sem
encontrar resistência. Nesta incursão chegaram a um lugar onde havia um
tremebdal, Procuraram a fonte e ao pé de um serro de muita pedra e pouca
vegetação, foram encontrar abundante corrente dagua que parecia sair
fervendo do seio da terra, o que fez Manoel perguntar a si mesmo aonde
ficaria a fogueira colossal que esquentava aquella água.
Escarmentados os
selvagens daquellas paragens regressou a Bom Sucesso e subiu pelo Piancó,
chegando ao Boqueirão aonde se empenhou em luta renhida com os Coremas.
Mas emquanto Manoel força aquelle passo, vovamos ás Pinharas.
Theodosio não podia soffrer a
teimosia do indígena que, quando acossado se recolhia aos seus
esconderijos, para voltar no dia seguinte. O capitão-mór constituira-se
o terror dos selvicolas á excepção dos naturaes do Piancó. Proximo á
Pedra Branca recebia o Pinharas pela margem a esquerda um poderoso
affluente, por onde desciam os caboclos a incommodar os colonos.
Theodosio subiu por este rio limpando-lhe as margens em successivos
rencontros. Chegou depois de muitos dias a metter-se numa garganta,
donde não lhe foi possivel dar mais um passo. Recuou para o sertão,
desdobrando seu pessoal numa extensa linha de emboscadas que ingligiram
aos selvagens sérios prejuízos em vidas. Pensava o desbravador em reunir
os recursos de todos os seus parentes fazendeiros nos Carirys afim de
destruir o poder dos Coremas, quando á frente de trezentos brancos e
centenas de índios se lhe juntou o coronel Manoel de Araujo Carvalho,
pernambucano que tinha as suas estâncias á margem do São Francisco. Fôra,
pelo governador geral do Brasil, incumbido de domar os Coremas que
estavam assolando fazendas da capitania de Pernambuco. Manoel de Araujo
consumiu um anno para vingar as cabeceiras de Pageú, empenhando-se quase
diariamente em sangrentos combates. Por fim transpoz a Borborema, entrou
nas Pinharas. O seu encontro com Theodosio não teve o cunho de muita
cordialidade, pois o capitão-mór das
Piranhas sentiu-se um tanto desautorado com a incmbencia concedida a
outro pelo governador geral. O seu primeiro movimento foi retirar-se da
luta, recolhendo uma parte de sua gente a Bom Sucesso e outra a Timbauba,
nos Carirys.
Araujo Carvalho, porém, possuindo alem
da bravura o invejável espirito de homem conciliador, demoveu Oliveira
Ledo de seus propósitos, interessando-o a continuar a campanha.
Intensificarama acção obtendo o resultado de evitar as incursões dos
selvagens ás Pinharas, ao Saburgy. Mas os campos, os vastos campos e as
serras do médio ao alto Piancocontinuavam inabaláveis sob o domínio dos
Coremas. Começaram uma batida caprichosa expugnando maloca, a aldeia,
sem com isto intimidar-se o gentio que se mostrava mais ousado, mais
animoso. Havia tres annos que Manoel de Araujo chegara ao sertão,
encontrara-se com Theodosio e empenhara-se na guerra. Os seus recursos
iam-se esgotando e um sopro de desanimo começava a insinuar-se entre os
combatentes. Demais, a luta ameaçava eternizar-se, se, por fim o
esgotamento não forçasse o pacificador a abandonal-a. Não possuindo
ferocidade de Theodosio, a columna de Araujo experimentava o peso morto
de muitos prisioneiros que, alem da manutenção, exigia um permanente
destacamento com a occupação única de vigial-os. Mas foi ali que o
pernambucano, encontrou os melhores elementos para auxilial-o. Entre os
interpretes achava-se Capuchú enviado por Manoel Garro. O sucurú
reconheceu entre os prisioneiros um irmão e dois parentes do afamado
Piancó, o chefe mais respeitado entre os Coremas. Capuchú, que jamais
esquecera a sua situação outrora de detido pelo Page branco, se
compadeceu da sorte de taes prisioneiros aos quaes vira um dia livres
contentes na taba de Cangassú. Aproximou-se delles, animo-os com a
esperança de liberdade. Recebendo a promessa dos selvagens, com estes
partiram Manoel de Araujo e Capuchú.
O chefe corema ficou attonito diante da
coragem e da confiança do grande cabo de guerra que, apoiado pelos
Coremas, que tinham acompanhado, conseguindo-lhe o tratado que tanto
desejara.
- O meu rei, chefe, quer a tua amizade.
Deseja os teus campos desoccupados para os meus irmãos nelles criarem
gados, mas não quer o teu povo nem as tuas roças. Os Coremas continuarão
livres e se alguma tribu lembrarse de inquietal-os eu e os meus
estaremos ao teu lado no instante da peleja. Eis o resumo do discurso
feito por Manoel de Araujo e traduzido pelo Sucurú.
Manoel de Araujo passou tres dias como
hospede de Piancó em obediencia a pragmatica dos caboclos. Então
realizou-se uma grande festa de homenagem e de ratificação do tratado.
Nessa occasião, segundo relatou o benedictino Loreto Couto, Araujo
entregou ao cacique de Piancó o seu bastão e o selvagem passou ao seu
hospede um collar de vistosas plumas. Symbolicamente significava que
aquelle povo reconhecia a soberania de Portugal e continuava a viver tão
livremente como outrora. Nem todos os chefes, porém, s e embalaram nessa
ingenuidade.
Muitos impossibilitados de manterem a
luta, fugindo de incorrerem na aversão de Pianco e de seu amigo branco,
reuniram os homens, as mulheres e os meninos de suas aldeias,
transferindo-se de vez para as grandes florestas marginaes da bacia
amazonica.
Depois dos festejos, communicou o chefe
indigena a Araujo estar a poucas leguas dali um chefe branco que, a
custa de luta renhida durante muitas e muitas luas seguidas, tinha
chegado e estabelecido seu acampamento bem perto da aldeia.
Capuchú informou ser Manoel Garro que no
começo da acção fôra encarregado de desembaraçar o rio Piancó.
Combinou-se de fazer descer dois indios,
um, delegado de Araujo e outro como enviado de Piancó, afim de
communicarem as pazes celebradas e a consequente suspensão de
hostilidade.
Partiram os enviados: no dia seguinte
Manoel Garro e os seus guerreiros entravam pacificamente na taba aonde
se hospedava Araujo. O moço declarou seu inabalavel intento de continuar
rio acima a cata de terrenos auriferos, aconselhando Araujo, para não
despertar suspeitas entre os naturaes, que a sua escolta fosse muito
reduzida. Manoel escolheu uns quarenta homens e mandou os demais se
recolhessem a Bom Successo.
Manoel de Araujo voltou ás margens do
São Francisco, donde tornou a Piancó acompanhado de familias conduzindo
alguns rebanhos para iniciar o povoamento daquelle districto.
Desde que os selvagens viram partir os
guerreiros de Manoel, logo o notaram acompanhado de poucos homens
perderam a desconfiança, cercaram-no de todas as attenções. Então
desenvolveu Garro junto a Piancó, com habilidade, o seu plano de chegar
até as minas.
O chefe dos Coremas escutou-o, fez
perguntas sobre utilidade do ouro e concluiu:
-Tens de esperar até amanhã. Bem poucos
dos meus guerreiros saberão servir-te de guia. Um dos que melhor conhece
a região esta na serra, caça do mocó. Chegará com a noite.
Comprehendeu o mineiro ser inutil
continuar tratando do assumpto, e desviou a conversa para o que estava
no alcance da vista. Interessou-se pelas origens, mas o cacique não
sabia donde vieram os primeiros de sua raça. A tradição conservava que
um dos primeiros chefes, talvez o primeiro que ali erguei a taba,
chamava-se Piancó, que significava - o que produz tristeza. – O
appellido lhe veio do seu genio bellicoso, da bravura e da fereza contra
os seus inimigos. Foi elle quem espalhou por estes campos e por estas
serras innumeras famílias de guerreiros que encheram de gente toda a
região dos Coremas onde se levam dias para atravessal-a duma a outra
parte. Foi elle quem exercitou os homens da tribu na arte de combater.
Quando morreu?... Ninguem sabe dizer, mas o certo é que se ficou
chamando Piancó todos os que empunham o bastão de chefe dos chefes dos
Coremas e ao rio que nos dá agua e peixes”.
“Piancó permaneceu impassivel, sentado
na rede, puxando grandes baforadas do seu cachimbo. Manoel disse-lhe
então:
– Chefe dos Coremas, o chefe dos brancos
de todo sertão veio ver-te e offerecer-te a sua amizade. A outra pessoa
é a esposa de teu hospede.
O incola levantou-se e dirigiu-se aos
recém-chegados:
– O chefe dos brancos, emquanto aqui
estiver é o dono desta oca: a mulher do meu hospede tem todas as
mulheres da taba do Piancó para servil-a.
E segundo o costume dos indigenas,
Eulina (esposa de Manoel Garro) passou ao compartimento das mulheres,
sendo servida ao capitão-mór substanciosa refeição.
Theodosio, com o fim de manter a
conversação, começou a contar ao Corema factos da cidade. Depois
falou-lhe dos Carirys, das suas fazendas, dos seus gados, de sua mulher,
dos seus filhos. Tratando destes, inqueriu do selvagem o numero de
herdeiros. Piancó soltou uma baforada comprimindo um suspiro. Parece que
sobre a catadura do rosto feroz, passou o traço esbatido de pungente
saudade! E falou:
– Não tenho filhos. Nunca tive mulher.
Um chefe corema só deve prender o coração quando chega a meia idade.
– Então é tempo e muito me
honraria se assistisse ás tuas bodas, ó chefe; disse Oliveira.
– E muita corema moça e bonita
deve estar disputando a preferencia, auxuliou Garro.
– Meus olhos escolheram uma vez
e... enganaram-se... não me arrisco a segundo engano.
– Inacreditável, uma corema
zombar do afecto de seu invencivel chefe, exclamou Oliveira.
– Não, atalhou Manoel
recordando-se, não era corema, era sucurú, a filha de um chefe cariry e
chamava-se Manaíra.
Piancó deu um salto de fera
contra Manoel e perguntou num tom amalgamado em armagura e odio:
– Manaíra... Conheceste Manaíra?...
–Sim, chefe conhecia-a durante
os seus últimos instantes de vida.
E minunciosamente relatou o
triste episodio.
Houve um momento de silencio
profundo até que o selvagem o rompeu:
– Um cacho de soffrimentos:
Cangassú para honrar a palavra, queimou a filha; a filha para não perder
o noivo, queimou-se com este.
Na mesma fogueira queimei o
coração. Pois meu coração era ella...
E saiu immediatamente, talvez
para fazer comprehender que, absolutamente, precisava desviar-se do
assumpto”.
Daí, Manoel Garro seguiu até as terras
de Bruxas (Cachoeira de Minas), onde encontrou ouro, mas não pôde
aproveitá-lo, por não haver água necessária para a extração. Voltou
à região do Boqueirão, onde foi cuidar de sua família e criar seus
gados.
No romance, o autor narra a história,
incluindo-a em uma época bem mais antiga, no contexto do
desbravamento da Paraíba, com detalhes e minúcias que dão um
colorido e um impressionismo tão reais que confunde o leitor,
fazendo-o viajar entre o real e a lenda.